Todos os dias, quando o ponteiro do relógio marca mais ou menos 6h, o ritual da ex-costureira Luiza Cortez de Paiva, 49, inicia. Ela sai do alpendre, anda alguns metros e lança na água minúsculos grãos, espalhados em viveiros. Lá embaixo, milhares de tilápias se agitam e disputam a ração. São elas que reforçam a renda da piscicultora, do marido, “Zé´, e de um número incontável de criadores. Desenvolver a atividade tem sido, porém, difícil no Rio Grande do Norte. “Não estão deixando a gente produzir”, diz o presidente da Cooperativa dos Piscicultores do estado (Coopirn), Sérgio Braga. Segundo ele e especialistas, a tilapicultura potiguar enfrenta dificuldades para se expandir, por falta de outorgas e, por consequência, de licenças ambientais para o cultivo.
Criação de tilápias é atualmente fonte de renda para diversas famílias no Rio Grande do Norte
O obstáculo à liberação oficial da produção é a cautela necessária, segundo órgãos ambientais e pesquisadores, para preservar os mananciais de água do estado e evitar que o problema de poluição que atinge alguns deles evolua. Estudos apontam que o teor principalmente de fósforo em alguns açudes está acima do limite permitido de 0,03% e que, como a criação dos peixes é desenvolvida em tanques-rede implantados diretamente na água, a tendência é que a situação se complique. “A preocupação não é com a espécie em si”, explica o professor do departamento de Oceanografia e Liminologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Graco Aurélio Viana. “A preocupação é com o excesso de matéria orgânica e de elementos como o fósforo (presente na ração) que um cultivo em grande escala pode levar à água, formando uma salada capaz de provocar a chamada eutrofização (o processo de poluição gerado por fezes, urina e nutrientes que, em grande quantidade, fazem aumentar o número de algas, provocando uma coloração turva na água e reduzindo o nível de oxigênio no ambiente). Isso torna o ambiente inabilitado para qualquer atividade, seja para o abastecimento da população, seja para o cultivo do peixe”, diz.
O estudo que acendeu o sinal de alerta para esse tipo de risco e que constatou o comprometimento da água em alguns reservatórios, decorrente de fatores como o despejo de esgotos, por exemplo, foi uma das exigências legais que o Instituto de Gestão das Águas (Igarn), o Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente (Idema) e a Secretaria Municipal de Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos (Semarh) precisaram cumprir antes de começar a abrir caminho oficialmente à produção de tilápia em águas públicas no RN. O coordenador de Gestão da Semarh, Félix Antônio Fialho, observa que a lei 8.769 de 2005 e uma instrução normativa que saiu depois, em consonância com a lei estabelecendo critérios e normas para o desenvolvimento da piscicultura no estado, tratam da seleção dos reservatórios, da delimitação das áreas para a atividade e diz também que para que haja a prática da piscicultura o reservatório tem que ter capacidade de suporte, ou seja, volume de água e qualidade. Daí veio a necessidade de estudar o ambiente antes.
“Entendemos que a atividade pode propiciar uma nova alternativa de produção e renda no estado e ajudar a fixar o homem no campo e é isso o que queremos, mas também temos que ter prudência e responsabilidade”.
Projetos para açudes estão parados
O potencial de desenvolvimento socioeconômico enxergado na criação de tilápia estimulou o governo do estado a selecionar pelo menos oito açudes com potencial para abrigar parques aquicolas, áreas para a produção do peixe, no estado. A proposta era, inicialmente, instalar um total de 1.958 gaiolas (tanques-rede) nos reservatórios, com previsão de produção anual, cada, igual a 1 mil kg. Isso significaria uma produção somada, por ano, de mais de 1,9 milhão de kg, diz o subsecretário de Pesca do estado, Antônio-Alberto Cortez.
“Se você multiplicar por R$ 5 que é o preço médio do quilo de tilápia, terá um total de R$ 803,3 mil/mês, que, vezes 12, totalizará R$9,63 milhões com essa produção”, calcula, explicando que 50% de cada parque seria explorado por comunidades locais de produtores e que a outra metade seria licitada para investidores. Com a necessidade de cautela para evitar a poluição da água, os editais para que os empresários pudessem disputar o direito de uso dessas áreas não foram, porém, lançados. “Precisamos dessas áreas”, diz Sérgio Braga.
Antes de dar esse passo, os órgãos ambientais realizaram os estudos, recomendaram a redução do número de gaiolas sugerido e que a produção fosse liberada em caráter experimental. “Mas qual é o empresário que vai investir em caráter experimental?”, questiona Cortez. Para dar uma ideia de como ficaria o projeto, ele diz que o açude Campo Grande, por exemplo, que tem 1,5 hectares e está situado no município de São Paulo do Potengi, teve a quantidade de gaiolas prevista no projeto reduzida de 300 para 150.
“Os estudos apontam que as áreas estão com certo grau de poluição e que a criação de peixes poderia agravar o problema. Só que a criação de peixes é algo de baixo impacto, se for feita dentro dos padrões de sustentabilidade. Há também que lembrar que, com acompanhamento sistemático, dificilmente ocorreria algo de desagradável nessas áreas, partindo da piscicultura”, acrescenta o sub-secretário.
Os órgãos ambientais concordam que é possível produzir sem degradar o meio ambiente, mas reforçam a necessidade de cautela. “Entendemos que a atividade pode propiciar uma alternativa de produção e renda ao setor agrícola e ajudar a fixar o homem no campo, mas temos que desenvolvê-la com precaução, diz Félix Lins Fialho, da Semarh. “A atividade tem que ser devolvida, mas buscando a máxima sustentabilidade. É preciso trabalhar de acordo com a capacidade de suporte que o ecossistema aguenta”, reforça Graco Aurélio, da UFRN.
Reunião técnica debaterá assunto nesta semana
Numa reunião técnica que deverá reunir os órgãos ambientais e os ligados à piscicultura no estado deverão ser discutidos esta semana prazos e os melhores caminhos para viabilizar a implantação dos parques aquicolas do Rio Grande do Norte. Ainda deverão ser debatidas questões como a produção ser ou não liberada em caráter experimental e se a criação será permitida em reservatórios que servem também para abastecimento da população.
Após o encontro, novas coletas de água devem ser realizadas e, de posse dos resultados que apontarem, os órgãos devem chegar a uma definição mais precisa sobre os reservatórios, explica Fialho, da Semahr. As outorgas, ou autorizações para o uso dessas áreas, serão liberadas a partir de editais de concessão, que definirão, entre outros pontos, por quanto tempo os reservatórios poderão ser explorados. Os investidores interessados deverão apresentar projetos e os que saírem vencedores da licitação deverão então receber o sinal verde para pedir o licenciamento. “Para receber o licenciamento, o projeto precisa da outorga. Sem ela, os processos que chegam ao Idema ficam parados”, explica o fiscal ambiental do Idema, Itan Medeiros. “Saindo a outorga é meio caminho andado para o licenciamento”, reforça. A Secretaria de Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos nega que a atividade esteja sendo travada por burocracia. “Também estamos interessados no desenvolvimento da atividade, mas esses são passos necessários”, frisa Félix Fialho. O Ministério da Pesca diz que uma lei adaptada para o setor que saiu no ano passado deverá tornar a concessão de licenças mais ágil e simplificada em todo o país.
Sem recursos, produtores abandonam a atividade
De acordo com o presidente da Cooperativa dos Piscicultores do Rio Grande do Norte, Sérgio Braga, sem outorga e o consequente licenciamento para os projetos de tilapicultura, a atividade trava porque o criador não pode, por exemplo, pedir financiamento ao banco para expandir o cultivo. Um sinal das consequências que esse nó tem provocado é que dos 52 membros da cooperativa só oito ou dez continuam produzindo. O restante desistiu, por, entre outros motivos, falta de recursos para manter o cultivo. “O banco só empresta o dinheiro se houver o licenciamento. Além disso, nos preocupamos em fazer um investimento, que não é barato, e depois de estar com a produção ser penalizados com uma multa ou com a parada da produção. Ninguém quer investir assim”, diz Braga. “Queremos trabalhar de acordo com a lei e queremos ter uma produção sustentável”.
Luiza Cortez de Paiva, citada no início da reportagem, está há cinco anos no ramo com o marido, marceneiro, mas não conseguiu financiamento para investir. “Tudo teve que ser feito com recursos próprios”, afirma. O casal começou o cultivo com quatro gaiolas. Hoje, são cerca de 20 implantadas na barragem que tem no quintal de casa. Eles também criam os peixes em dois viveiros. “Quando o negócio está ruim na marcenaria é a renda da tilápia que nos sustenta”, conta a piscicultora. A produção na área que eles mantém chega a 300kg por semana e a 1.200 kg por mês.
O produto é comercializado na porta de casa, na feira livre e também é vendido para um supermercado de Parnamirim. Para o feirante que faz a revenda e para o supermercado o quilo sai a R$ 5. Na porta de casa, direto ao consumidor, custa R$ 6.
Os custos de produção, segundo Luíza, são o que mais dificulta a atividade. Para criar 10 mil peixes o custo chega em média a R$ 15 mil, durante o processo produtivo, que, para cada safra, dura cerca de seis meses. Só com ração são gastos cerca de R$ 12 mil. Além disso, pesam a energia, o custo dos alevinos (os filhotes que são comprados e criados por eles) e do ajudante, que recebe R$ 150 por semana. De acordo com Sérgio Braga, da Coopirn, a ração usada pelos criadores é cara porque é importada de outros estados e feita à base de matérias-primas como a soja. “Precisamos de pesquisa para produzir uma ração mais barata e acessível ao produtor, usando uma proteína nossa, como o sorgo, por exemplo”, acrescenta ainda ele. Pedro Mesquita, coordenador de Pesca e Aquicultura do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), lembra que também é preciso estimular o consumo de pescados.
Números do setor são quase incógnita
Não há números precisos sobre a dimensão da tilapicultura no Rio Grande do Norte, nem no Brasil. O tamanho da área de cultivo, por exemplo, é uma incógnita. Como muitas pisciculturas estão localizadas em fazendas particulares e como não há registros nos órgão competentes sobre o cultivo em águas públicas municipais, estaduais e federais é difícil estimar qualquer número, diz, Pedro Mesquita, do DNOCS. No RN, estima-se que a produção gire em torno das 2 mil toneladas/ano. “Mas há potencial para crescimento ”, garante Felipe Matias, secretário de Planejamento e Ordenamento da Aquicultura do Ministério da Pesca e Cortez da Secretaria de Pesca.
A produção que se tem hoje é calculado com base no consumo de ração e não é precisa. “Em algumas áreas os peixes sobrevivem com alimento natural”, diz Sérgio Braga. A produção do estado ainda cresce estimulada pela adesão crescente de criadores de camarão, que fazem o cultivo consorciado.
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