O manejo do pirarucu garante renda sustentável para os pescadores e proteção para o meio ambiente, com o uso inteligente dos recursos naturais
Ainda é madrugada e os pescadores, um a um, entram em suas canoas e seguem pelas águas calmas do lago Santo Antônio. A carne do pirarucu é valorizada e saborosa, mas pescar o animal não é assim tão fácil. Exige técnica, paciência e muita habilidade. Até a forma de remar deve ser cautelosa para não assustar os peixes. Após um dia inteiro a postos, é possível que a canoa volte vazia para o acampamento.
No lago os pescadores têm a companhia dos jaçanãs, pica-paus e tantos outros passarinhos. Na canoa uma garrafa de café, feito durante a madrugada, tem lugar cativo. Vez ou outra um grupo de macacos sai pulando de galho em galho pela floresta que rodeia as águas. Ali em baixo moram além de pirarucus, várias espécies de peixes, incluindo as piranhas. Arraias e jacarés também fazem do lago morada. Estima-se que o Santo Antônio tenha pela menos 300 anos. E toda essa idade exige respeito. Além de pescar apenas o que a natureza permite sem que seja maltratada, os pescadores, em retribuição, protegem o lago durante todo o ano. É proibido pescar de malhadeira em qualquer época. E gente de fora também não pode pescar.
O manejo do pirarucu é uma fonte de renda importante para o município de Manoel Urbano, que além de vender a produção, também prepara a Feira do Pirarucu Manejado, um evento que já parte do calendário da cidade e a cada ano cresce em número de visitantes e atrações oferecidas. Este ano a pesca teve início em meados de julho. Alunos da rede pública estadual e municipal visitaram o lago para conhecer o trabalho de manejo e se encantaram com o que viram.
Pesca do pirarucu é autorizada entre junho e novembro, apenas em lagos com plano de manejo aprovado. A lei permite a pesca de peixes a partir de 1,5 metro. No Acre a legislação será alterada para permitir apenas a pesca de adultos com mais de 1,7 metro. Estudos demonstraram que na região o Araipaima gigas demora mais tempo para atingir a fase adulta, embora ganhe peso mais rápido.
O pirarucu, o Arapaima gigas, ou o peixe vermelho, para os indígenas, está no topo da cadeia alimentar. Se alimenta de pequenos peixes, insetos, cobras, plantas e frutos. Os casais se formam durante a seca. Dos milhões de ovos depositados por cada fêmea, apenas 1% chega a idade adulta, e até lá, quem cuida dos filhotes é o pai.
Ele chega a medir três metros e pesar mais de 250 quilos. Para pescar o maior peixe de escamas de água doce do mundo é preciso seguir algumas regras. O peixe é protegido pela legislação ambiental desde 1991, e de lá pra cá as leis foram aperfeiçoadas para garantir a manutenção do recurso pesqueiro. No Acre apenas o manejo do peixe é permitido, qualquer pesca que não seja para subsistência em lagos ou rios que não dispõem de acordos pesqueiros é ilegal. Uma boa maneira de verificar a origem do peixe na hora da compra é pedir para ver o lacre da manta, uma tarja de plástico vermelho. Este ano o Ibama lacrou todas as mantas de pirarucu que vieram de lagos manejados. A carne dele, por ser nobre, também é cara. O preço do quilo da manta salgada é R$ 20.
Contar para pescar
Conhecer os hábitos do pirarucu, um peixe típico da região Amazônica, é fundamental para uma pesca bem sucedida. Ele gosta de almas calmas e geralmente procura os lagos ao longo dos rios durante as cheias. A cada vinte minutos ele precisa subir à superfície para respirar e faz isso sempre num raio de 50 metros. É nessa hora que ele é arpoado pelos pescadores, que, atentos, esperam este momento por horas em suas canoas. Essa técnica de contagem por audição e visualização é um conhecimento tradicional dos caboclos amazônicos que estava esquecida. Foi resgatada pelos pescadores da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirawá, no Amazonas. A eficácia foi comprovada através de uma pesca científica realizada por pesquisadores. O método foi trazido para o Acre por pescadores de Santarém, no Pará, que participaram dos primeiros ano do manejo do pirarucu no Estado, num intercâmbio com os profissionais da região. Através do método é possível identificar a população de peixes adultos e de bodegos (filhotes) no lago. O Ibama autoriza a pesca de 30% dos adultos. No caso do lago Santo Antônio, os pescadores poderiam retirar 24 peixes este ano e a estimativa é de que em todo o Estado, com os lagos manejados nas bacias do Juruá e Envira, a produção chegue a sete toneladas de carne.
Para repassar as técnicas de contagem, essenciais para a realização do manejo, aos técnicos da Seaprof, mesmo os que ainda não estão envolvidos no trabalho, participaram de um curso em Sena Madureira. A meta é expandir a ação para outros municípios.
Tarauacá deve ser a próxima cidade acreana a realizar trabalho com o manejo e já trabalha os acordos de pesca entre a comunidade de pescadores.
Os segredos da pesca
Desfiado, com cebola, ao creme ou simplesmente frito. Existem várias formas de preparar o pirarucu, este peixe amazônico de carne nobre que é comparado ao bacalhau norueguês. Mas, até que o animal esteja pronto para ir à panela, o trajeto percorrido é longo. Pescá-lo não é tarefa das mais fáceis. Grande e esperto, ele costuma driblar os arpões dos pescadores. Conhecer os hábitos do peixe é fundamental para uma pescaria bem sucedida.
Experiente e criado entre as canoas, Francisco Jacques Filho, o Tachico, conta os segredos para uma pesca bem sucedida. Paciência para esperar o dia inteiro se for necessário, calma nos movimentos, habilidade com o arpão e um pouco de sorte. Quem tiver todos esses requisitos pode se aventurar na pesca.
Tachico pesca desde criança. Fez das malhadeiras, remos e arpões sua profissão. Vez ou outra um pirarucu caia na rede, mas ele não era profissional na pesca do maior peixe de escamas de água doce do mundo. Foi no intercâmbio com os pescadores de Santarém, promovido pela Seaprof nos primeiros anos do manejo, que ele aprendeu as técnicas do arpão, da contagem dos peixes e do processamento do animal.
“Antes a gente pescava de qualquer jeito. Na verdade, ninguém pescava o pirarucu pra vender porque não conseguia e só comia a carne do peixe quando um filhote caia na rede. Agora que a gente já sabe tem um fonte de renda a mais todo ano”.
A vez das mulheres
Ela ainda não conseguiu tirar sua carteira de pescadora. Mas está tentando. Dulcelina Monteiro dos Santos, 54, é uma das três mulheres admitidas este ano para fazer parte do grupo de pescadores que trabalham o manejo do pirarucu em Manoel Urbano. Vinte e duas famílias fazem parte da Colônia de Pescadores. Às mulheres, por enquanto, ainda cabe o trabalho em solo, nada de canoa e lago: elas preparam as refeições e dão suporte ao trabalho.
Mas, se a elas ainda cabe o papel de pilotar o fogareiro, trabalho tão importante neste projeto quanto a pesca em si, a divisão dos lucros dá o exemplo: é feita de forma igualitária entre todos os membros, sejam homens ou mulheres, tendo pescado ou não. O grupo entende que o papel de cada um é fundamental para o sucesso coletivo.
Dulcelina é esposa de Tachico, um dos pescadores mais experientes do grupo. Foi ele quem deu a idéia de integrar as mulheres. “Já que era pra gente pagar pelo serviço é melhor que elas façam parte dele e assim nos ajudem a crescer e todo mundo cresce junto”, justifica.
Dulcelina conta que sempre quis trabalhar na pesca, mas o cuidado com as crianças pequenas atrapalha os planos. Agora, a netinha brinca no acampamento enquanto ela prepara o almoço. “Pra gente ficou bem melhor, porque a renda lá em casa vai ser dobrada. É um dinheiro que ajuda a comprar roupa, remédio, comida e o que mais estiver faltando pra levar a vida. Mas eu pretendo mesmo é aprender a pescar”, comenta.
Descama, fileta, salga, seca
Tirar o peixe do água, no arpão ou malhadeira (neste caso é uma rede específica, com malha de 32 centímetros para que espécies menores não se prendam) requer habilidade. Mas, com o peixe “fisgado” e dentro da canoa, começa outra etapa que também exige técnica apurada: o processamento do pirarucu.
Pescadores aprenderam técnicas de processamento do peixe em intercâmbio com pescadores de Santarém (PA), que acompanharam os primeiros anos do manejo no Acre, a pedido da Seaprof.
No Acre, como em toda a Amazônia, o processamento do pirarucu ainda acontece de forma bem artesanal e na beira do lago. Uma estrutura mínima, e com alguns cuidados básicos, é montada para dar suporte ao trabalho. As escamas do peixe são cuidadosamente retiradas, pois servem para a confecção de artesanatos. O peixe é filetado, mergulhado numa solução de água com cloro, salgado, lacrado e exposto ao sol para secar.
Manejar ou pescar?
Você deve estar se perguntando por que a pesca do pirarucu se chama manejo. Na verdade, manejo é a pesca de forma responsável e com critérios para não prejudicar nem o meio ambiente nem o recurso pesqueiro. Essa prática existe no Acre com diversas espécies e é um trabalho coordenado e executado pela Secretaria de Extensão Agroflorestal e Produç ão Familiar, a Seaprof. O manejo do pirarucu faz parte do projeto de Gestão Participativa dos Recursos Pesqueiros e teve início em 2005. É um trabalho realizado em parceria como Ibama e o WWF. Para o manejo acontecer o primeiro passo é realizar os acordos de pesca, pactos feitos entre as comunidades para definir as regras da pesca. Em lagos onde acontece o manejo do pirarucu, por exemplo, os pescadores não utilizam malhadeiras ou tarrafas. Segundo Evandro Câmara, talvez o Acre seja o único estado a adotar os acordos de pesca como política de governo a ajudar as comunidades a se organizarem para o manejo.
O Ibama aprova, a partir dos acordos de pesca, o plano de manejo. Para pecar o pirarucu é preciso seguir a lei, já que ele é um peixe que recebe atenção especial dos órgãos ambientais. No Acre a pesca é autorizada entre junho e novembro, e apenas em áreas de manejo. A pesca ilegal pode render multas que variam a partir de R$ 700, agravadas em situações como reincidência. Cada quilo de peixe apreendido soma R$ 20 ao valor da penalidade.
Pesca manejada, o meio ambiente agradece
Pode até parecer contraditório que a pesca de um peixe que recebe proteção especial da legislação e que é alvo de ação predatória em toda a Amazônia, cujo estoque pesqueiro é motivo de alerta, proteja o meio ambiente. Mas não estamos falando de uma pesca qualquer e sim do trabalho de manejo, que em boa medida pode ser traduzido também por cuidado com o meio ambiente.
Manejar o pirarucu protege o meio ambiente, pois o trabalho envolve também, na verdade, tem como ponto de partida, o cuidado com o lago em que ocorre o manejo. Os próprios pescadores passam a ser os grandes guardiões de sua fonte de renda e embora a pesca do pirarucu aconteça num período específico e exija não mais que dois meses de trabalho, a proteção do lago manejado é feita durante o ano inteiro. Segundo o acordo de pesca – feito pelas comunidades – fica proibida a pesca comercial de qualquer espécie que não seja o pirarucu. “Isso ocorre para que as malhadeiras e tarrafas utilizadas em pescas de outras espécies não capturem os bodegos, que são os filhotes de pirarucu. Foi observado que o manejo já melhorou a reprodutividade dos peixes e as condições do lago. É um espaço defendido pelos pescadores porque eles entenderam que pra retirar o peixe da natureza todos os anos e garantir essa fonte de renda, existe um preço a pagar, caso contrário é possível que a pescaria do ano que vem não renda nada e isso eles não querem”, explica o gerente de Manejo de Lagos da Seaprof, Carlos Leopoldo.
O secretário Nilton Cosson, da Seaprof, lembra que o trabalho de manejo de lagos e o fortalecimento da cadeia produtiva do pirarucu passa por um dos pilares do projeto de governo, que é o empoderamento das comunidades, que foram estimuladas a se organizar para a pesca, e encontraram uma fonte de renda anual para garantir a melhoria da qualidade de vida.
Tudo isso faz parte do esforço de transformar o Acre realmente num lugar bom para se viver. A pesca acontece gerando renda para os pescadores, protegendo o meio ambiente, pois só se retira dele o limite que ele nos oferece e onde o Governo ganha com isso? Ganha com as pessoas felizes, ganha com o cuidado ao meio ambiente e com as comunidades organizadas. E isso é importante porque à medida que as comunidades incorporam o trabalho ele deixa de ser uma política de governo e vira um projeto de vida de cada um.
Renda que ajuda a construir sonhos
A grande paixão de José Amaro, 53, pescador e presidente da Colônia de Pescadores, sempre foram os barcos e a pesca. O manejo do pirarucu trouxe um diferencial para a vida da comunidade pesqueira à medida que garante, todos os anos, uma fonte de renda. Foi assim que Zé, como é conhecido, conseguiu realizar um de seus sonhos: construir a própria casa. Para a empreitada ele utilizou os recursos ganho com a pesca do pirarucu e os conhecimentos de carpinteiro naval, profissão que exerce quando não está nos lagos e rios a procura de peixes.
A Casa do Zé é especial e chama atenção em meio à pequena cidade de Manoel Urbano. É um verdadeiro barco ancorado em terra firme. “Eu só estudei até a quarta série e por isso não tenho muito conhecimento, mas entendo de rio e de madeira, pode perguntar o que quiser ou me pedir o que for, que em madeira eu sei fazer”, orgulha-se. A idéia de construir a casa em forma de barco veio de um sonho: “eu sempre quis morar num barco, mas no rio tem os contratempos das cheias e secas”.
O manejo tem suas vantagens. A primeira é oferecer aos pescadores uma fonte de renda segura a cada ano. Manejar significa melhorar as condições do lago para a reprodução da espécie, conscientizar as comunidades a proteger a área e controlar o estoque pesqueiro. Ganha quem pesca, ganha o meio ambiente e ganha também quem aprecia esta carne saborosa, conhecida como o bacalhau da Amazônia.
Agência de Notícias do Acre
Escrito por Tatiana Campos
Fotos por Ângela Peres