Por =João Lara Mesquita
Nessa sexta-feira os grandes jornais repercutiram um estudo publicado pela revista Science mostrando que “não há uma gota de água nos oceanos que não tenha sido afetada de alguma forma pela ação do homem” (Estado, 15/2, A20).
De acordo com os cientistas, que usaram dados da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO, na sigla em inglês), neste primeiro levantamento global sobre o impacto humano sobre os mares, 41% da superfície oceânica está sob forte pressão de atividades humanas, como pesca excessiva e poluição, e corre sério risco de se transformar em deserto de vida inanimada.
Os dados são dramáticos, mas não surpreendem. Recentemente a ONU alertou que, nos últimos 15 anos, dobrou a quantidade de zonas mortas no mar. Hoje seu número é estimado em cerca de 150. São áreas cujos tamanhos variam entre 2 km² até 70 mil km², e nelas não existe oxigênio para que haja vida. Por isso, para a ONU, a pesca industrial tem data para acabar: o ano de 2048.
Esses dados impressionantes foram a mola propulsora que me induziram a uma grande viagem. Durante dois anos desci a costa brasileira de veleiro, do Rio Oiapoque ao Arroio Chuí, produzindo 90 documentários para a TV Cultura, para a série Mar Sem Fim. Durante a jornada, que começou em 2005 e terminou em 2007, navegamos cerca de 6.200 milhas (ou 11.500 km) sempre rente à costa, entrando em todas as baías e enseadas, e demandando a barra de quase todos os rios, numa ousada tentativa de fazer um levantamento socioambiental da zona costeira brasileira, chamando a atenção da opinião pública para seu abandono, ocupação predatória e potenciais danos.
O que vimos é de estarrecer. Assim como ocorre no mundo, no Brasil a densidade demográfica da costa é superior à do interior: 87 habitantes por km², enquanto a média nacional é de 17 habitantes por km² (dados do IBGE). E o maior problema mundial dos oceanos é justamente o lixo e a falta de saneamento básico, além da poluição industrial.
No Brasil apenas 20% de todo o esgoto produzido recebe algum tipo de tratamento (Atlas de saneamento do IBGE). Na faixa a que chamamos de zona costeira estão 400 dos mais de 5 mil municípios brasileiros (63% deles depositam seus resíduos em lixões a céu aberto, diz o IBGE), além de 15, das 26 regiões metropolitanas, e 17 Estados. Aonde você supõe que vai parar os rejeitos de toda essa gente? No mar, claro! Especialmente no litoral, uma faixa de transição entre os oceanos e os continentes, delicada, instável e frágil, onde começa grande parte da cadeia de vida marinha.
Apesar do conhecimento de especialistas e professores acadêmicos (entrevistamos mais de 40 durante nossa viagem), que alertam sobre a ocupação predatória de nossa costa, autoridades e cidadãos fazem ouvidos moucos. O resultado vem na forma de um estupro sistemático sofrido por nossa zona costeira.
Por ignorância de alguns casos, ganância ou egoísmo de outros, estamos destruindo um dos mais importantes ecossistemas do planeta antes mesmo de conhecê-lo adequadamente. Até hoje o homem explorou menos de 2% do fundo dos oceanos que cobrem 71% da superfície do planeta. Mesmo assim já foram recenseadas 200 mil espécies. Os cientistas acreditam que identificaram e descreveram menos de 10% da totalidade dos seres marinhos. Mas os mares são muito mais que hábitat para milhares de espécies: eles são, em grande parte, responsáveis pelo clima na Terra.
Até o ar que respiramos depende em grande medida da fotossíntese feita pelas algas do fitoplâncton. Entre tantos benefícios, o mar contribui para retirar da atmosfera o dióxido de carbono, principal gás produtor do efeito estufa. Ainda assim continua pouco estudado, e as agressões que recebe repercutem menos que qualquer problema no meio ambiente terrestre.
O fenômeno é mundial e o Brasil não é exceção. Este país, “cujo nascimento teve o mar como placenta” (como escreveu Dennis Radunz no livro Museu Nacional do Mar), filhos que somos dos nautas portugueses, deu suas costas para o mar. E sem pressão da opinião pública não há nenhuma esperança.
Por isso ecossistemas importantes, como os mangues, tidos como berçários da vida marinha, além de filtrar e melhorar a qualidade da água, estão sendo destruídos numa velocidade impressionante. No Sudeste grandes áreas foram aterradas para a construção de portos, complexos turísticos e casas de veraneio. No Nordeste são arrasados pela carcinicultura, que usa essa área protegida – de acordo com o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) os mangues são Áreas de Preservação Permanente (APPs) – para a criação de camarões oriundos do Pacífico, incorrendo, assim, em outro crime ambiental: a introdução de espécies exóticas, considerada a segunda maior causa de perda de biodiversidade no planeta. A primeira é o desaparecimento de hábitat.
Mas não são só os mangues. Falésias do Nordeste, antigas linha da costa (consideradas APPs), e dunas (aqüíferos naturais, também APPs) são ocupadas por casas de veraneio e complexos turísticos. Impunemente.
Ainda no Nordeste é comum presenciar o constante pisoteamento de estruturas de corais por turistas, induzidos por operadoras de turismo alienadas e sem quase nenhuma vigilância do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
O mesmo problema se verifica na pesca, com redes de arrasto sendo passadas a menos de 100 metros da costa, às vezes em cima da arrebentação, sem que o órgão responsável por sua fiscalização, leia-se Ibama, possa agir por absoluta falta de recursos ou pessoal. (Em 2006 o total das despesas do orçamento do Ministério do Meio Ambiente equivaleu a 0,13% do Orçamento da União para o mesmo período.)
E então, vamos continuar tapando o sol com peneira? Até quando?
João Lara Mesquita é jornalista, autor do livro O Brasil Visto do Mar Sem Fim publicado pelas editoras Albatroz, Loqui e Terceiro Nome
Fonte = O Estado de São Paulo